Segundo a cosmologia hermética, os sete planetas clássicos são, em resumo, as forças responsáveis pelo maquinário do destino. Conforme eles completam suas jornadas pelo zodíaco, passam de um signo para outro e interagem entre si, acaba sendo determinado, em linhas gerais, o que vai acontecer aqui embaixo, na Terra. Porém, é bom frisar que, embora eu mesmo trabalhe com o conceito de uma “energia planetária”1, por assim dizer, eu enxergo os planetas físicos como sinais, indicadores, e não fontes dessas energias, como já expliquei no meu texto introdutório sobre magia astrológica. Eu também trabalho com uma hipótese meio soft de destino, nesse sentido. Não entendo que o que é determinado astrologicamente seja inexorável… mas é, com certeza, uma forte influência, ainda que dentre várias outras.
Como eu sempre tento deixar bem claro, embora a gente tenha dado aos planetas os nomes dos deuses do panteão romano, os deuses não são os planetas. É por isso que eu postei aqui aquele texto, um tempo atrás, sobre os nomes dos planetas em vários idiomas. O planeta Júpiter em português é chamado pelo nome do deus Júpiter, mas seus nomes são Dāpinu em babilônico, Tzedek em hebraico, Al-Mushtari em árabe etc. Há uma associação entre as duas coisas, claro, por isso que dá para usar o Hino Órfico ao deus Zeus em rituais do planeta Júpiter, mas, na hierarquia cósmica, as deidades estão acima dos planetas. E, por “acima”, eu não quero dizer melhores ou algo do tipo, mas que eles se encontram numa etapa anterior da cadeia causal que resulta na manifestação da realidade. Por isso, uma forma de se contornar os problemas causados a nível celestial2 é apelando para quem manda.
Tenho a impressão de que os antigos, há muito tempo, partilhavam dessa mesma noção. Entre os mesopotâmicos havia os rituais chamados de namburbi, realizados para quebrar o efeito maléfico de um mau presságio astrológico, em que os deuses eram invocados com oferendas e as preces shu-illa e o indivíduo era purificado por água consagrada sob as estrelas. Mais técnicas foram sendo desenvolvidas e refinadas com o tempo. Eu recentemente enfim assinei o Patreon do Dr. Ali A. Olomi, e ele também ensina várias técnicas que ele pesquisou, em suas fontes medievais, de remediação astrológica, muitas das quais incluem o uso dos 99 nomes de Allah.

Uma prática, por exemplo, para lidar com um Saturno aflito no seu mapa natal ou como medida protetora contra um trânsito difícil envolve escrever o nome divino Al-Qadir (o Onipotente) num pedaço de papel num sábado ao amanhecer, aí embrulhar com o papel um grão de mirra junto de três sementes de papoula e jogar num fogaréu. Outras práticas envolvem recitações repetidas dos nomes divinos, invocações dos anjos planetários e talismãs específicos. Em todo caso, a lógica é a mesma: as forças divinas (sejam elas anjos ou deidades) estão acima das forças das esferas astrológicas. Apelando para elas, dá para resolver as tretas que estão abaixo.
E isso nos leva ao tema do texto de hoje. Outro dia, enquanto revirava os Papiros Mágicos Gregos, eu esbarrei num ritual registrado sob o título PGM XIII. 343-646. Esse trecho em especial, aliás, toda essa parte, da linha 343 até 1077, é chamado de “O Oitavo Livro de Moisés”, datado do século IV d.C. Sobre esse material, o site Religion Database diz o seguinte:
Os manuais ritualísticos comuns consistem em coletâneas de rituais individuais para vários propósitos, como adivinhação, amor, sucesso e saúde. Esses rituais contêm o nome secreto, ou nomes, de poderes superiores que são essenciais para a realização bem-sucedida dos rituais. O ritual no Oitavo Livro de Moisés é diferente, porque o seu objetivo principal é obter o conhecimento de um tal nome secreto. Esse conhecimento é obtido por via de um encontro pessoal com o deus que também se espera que vá revelar ao praticante detalhes sobre a sua vida futura. O arranjo do ritual se baseia em eventos astronômicos. Preparações e atos ritualísticos iniciais ocupam uma duração de 41 dias, incluindo uma iniciação com os deuses das horas diurnas para, enfim, no 42º dia, o ritual principal ser realizado. As deidades envolvidas todas têm um contexto astronômico ou de criação, e as duas invocações centrais ou constituem uma cosmogonia ou são dirigidas ao deus criador. Seguindo as instruções para o ritual, são listadas 25 aplicações do nome secreto, cada uma das quais inclui breves atos rituais junto com a pronúncia ou a escrita do nome. Os estudiosos modernos identificam predominantemente duas versões do Oitavo Livro de Moisés no PGM XIII, enquanto alguns pesquisadores debatem que a segunda versão contém, na verdade, uma terceira. PGM XIII (AMS 76) se encontra guardado no Rijksmuseum van Oudheden, Leiden.
Como todo material nos PGM, a coisa é uma bagunça só, e eu não quero entrar muito em detalhes a respeito da composição do Oitavo Livro de Moisés, porque estou tentando ser mais conciso.
Como vimos, trata-se de um ritual longo, com toda uma preparação que possibilita posteriormente o uso de certos feitiços. Tem várias partes e talvez a coisa toda não seja muito coesa. Um trecho em especial ali se destaca para mim e é o que me motivou a fazer este texto. No final da primeira parte, chega a visão de um anjo que prevê o seu futuro. Depois, a partir da linha 619, lemos a seguinte invocação:
Eu te invoco, senhor, santo, celebrado em hinos, muito honrado, governante do cosmos [Serápis]: considera meu nascimento e não desvies teu olhar de mim, ____ filho de _____, que sabes teu nome verdadeiro e eficaz, ŌAŌĒŌ ŌEOĒ IAŌ IIIAAŌ THOUTHĒ THĒ AATHŌ ATHĒROUŌR AMIATHAR MIGARNA CHPHOURI IYEYĒOŌAEĒ A EE ĒĒĒ IIII OOOOO YYYYYY ŌŌŌŌŌŌŌ SEMESILAMMPS AEĒIOYŌ ĒŌOYE LINOUCHA NOUCHA HARSAMOSI ISNORSAM OTHAMARMIM ACHYCH CHAMMŌ. Eu te invoco, senhor, canto o teu poder sagrado num hino musical, AEĒIOYŌŌŌ. Queimo incenso e pronuncio: ĒIOYŌ IOYŌ YŌ Ō A EE ĒĒĒ IIII OOOOO YYYYYY ŌŌŌŌŌŌŌ ŌĒŌAŌAŌ OOOYO IIIIIAO IIYYYOAĒA YO. Protege-me de tudo em meu próprio destino astrológico; destrói meu mau destino; reserva-me boas coisas em meu horóscopo; prolonga minha vida e que eu desfrute de muitas benesses, pois sou teu servo e suplicante e cantei o teu nome santo e eficaz, senhor glorioso, governante do cosmos, o senhor dos dez mil nomes, o maior, nutriz e ordenador [Serápis].
Tendo puxado a fundo o espírito3 com todos os seus sentidos, dizer o primeiro nome em uma única exalação no leste, o segundo no sul, o terceiro no norte e o quarto no oeste, depois, tendo se ajoelhado para a esquerda sobre o joelho direito, dizer uma vez para a terra, uma vez para a lua, uma vez para a água e uma vez para o céu: ŌAŌĒ ŌŌ EOĒIAŌ IIIAAŌ THĒ THOUTHĒ AATHŌ ATHĒROYŌ.
Eis aí, então! Mais um exemplo do que estávamos falando: a invocação de uma força divina com súplicas para proteger o praticante de seu “próprio destino astrológico”, destruir seu “mau destino” e reservar “boas coisas em seu horóscopo”. Não sei vocês, mas eu acho isso fascinante.
A gente que lida com astrologia e magia costuma passar, com frequência, por situações de anunciar a chegada de certos trânsitos que podem ser complicados… o que resulta, via de regra, em pessoas vindo me procurar perguntando o que fazer, com graus variados de desespero. Por isso, seria legal ter uma recomendação para passar. Porém, infelizmente, porque nada é tão fácil assim, parece que ainda não vai ser esse ritual. Por vários motivos.

Primeiramente, porque essa invocação aparece no final de um ritual longo. Agora, existe sim a possibilidade de ser uma interpolação: o editor Morton Smith, responsável por esse trecho na edição de Betz, comenta que a presença de deidade Serápis4 ali é uma provável interpolação, já que ele não aparece antes no ritual. O autor argumenta que isso provavelmente não significa que o trecho todo seja interpolado, porém, lendo-o em contexto, ele parece bem estranho mesmo. Se for o caso de ser realmente uma emenda incongruente, seria melhor para nós, porque fica mais manejável lidar com esse trecho à parte, já que o ritual inteiro, feito à risca, é meio impraticável. Mais de 40 dias de preparação, tem que matar bicho, as instruções são confusas, é complicado demais.
Em segundo lugar, mesmo com o trecho sozinho, há outras dificuldades para se executar essa invocação, porque as instruções não são claras. Há voces magicae parecidas: a fórmula no começo, ŌAŌĒŌ ŌEOĒ IAŌ IIIAAŌ THOUTHĒ THĒ AATHŌ ATHĒROUŌR, parece muito com a que é repetida no final ŌAŌĒ ŌŌ EOĒIAŌ IIIAAŌ THĒ THOUTHĒ AATHŌ ATHĒROYŌ. As primeiras vogais são iguais, com diferença apenas de espaçamento (o que não quer dizer nada num papiro), mas tem outras diferenças depois. Considerando que há casos de transcrições errôneas em outros momentos dos PGM, essa não é uma hipótese de todo improvável aqui também. Se eu fosse apostar em uma delas como sendo a original e a outra sendo a versão mal copiada, eu diria que essa seria a fórmula final, ATHĒROYŌ, porque Morton Smith aponta que essa é uma fórmula de 36 letras e o número de letras das fórmulas é relevante. 36, sendo o total dos decanos zodiacais, é um número de óbvia relevância mágica.
Depois, quando o texto instrui “dizer o primeiro nome em uma única exalação no leste”, a nota de rodapé afirma que esse primeiro nome se refere à fórmula da linha 622, i.e. essa fórmula meio vaia cearense, ŌAŌĒŌ, que acabamos de discutir. A parte que quebra a gente é o fato de que há, aparentemente, quatro nomes nessa sequência que começa com as vogais e conclui com “ACHYCH CHAMMŌ”. E cada uma das quatro partes é para ser recitada em sequência: “dizer o primeiro nome em uma única exalação no leste, o segundo no sul, o terceiro no norte e o quarto no oeste”. Onde essas partes começam e terminam, só os deuses sabem5.
No fim, como acontece com tantos rituais dos PGM, é preciso uma boa dose de adaptação se a gente quiser trazer essa invocação aqui para um contexto contemporâneo. Não quer dizer que seja impossível, mas é uma atividade que exige um grande esforço e precisa ser feita por um praticante experiente com orientação de inteligências espirituais confiáveis. Eu mesmo pretendo dar uma oraculada para ver se eu tenho o cacife para uma empreitada dessas. Talvez, beeem talvez, no futuro dê para chegarmos a uma versão praticável, porém, por enquanto, fica como uma curiosidade interessante para quem gosta de estudar magia antiga.
- Para traçar um paralelo e não parecer que eu sendo muito alucinado aqui, em textos taoístas, encontra-se o conceito de “qi celestial”, e uma das teorias sobre magia talismânica no contexto árabe medieval usa o conceito dos “raios estelares” de Al-Kindi . ↩︎
- A divisão tripartida entre os mundos terrestre, celestial e divino é a que é usada por Agrippa, por exemplo. ↩︎
- i.e. respirado fundo. ↩︎
- Serápis é uma deidade sincrética greco-egípcia proeminente no período helenístico, reunindo características de Osíris, Ápis, Hades e Dioniso, ao mesmo tempo uma figura de abundância, cura e ressurreição e um deus com conexões ctônicas e solares. É um nome que aparece com frequência nos PGM. ↩︎
- De quebra, eu também não sei qual a diferença entre cantar o nome “para o céu” e cantá-lo “para a lua”, na instrução final
