O Papiro Dramático do Ramesseum provavelmente foi escrito para celebrar a ascensão ao trono de Senusret I na XII Dinastia, por volta de 1980 A.E.C. Ele foi descoberto em Ramesseum, Templo Mortuário de Ramsés II, em 1896, pelo egiptólogo inglês James Edward Quibell e hoje encontra-se no British Museum. Este papiro foi publicado, pela primeira vez, em 1928, pelo egiptólogo alemão Kurt Heinrich Sethe, que o denominou de “Dramático”. Foi publicado dentro de um trabalho maior intitulado Dramatische Textezu Altaegyptischen Mysterienspielen. Única tradução para o português do Papiro Ramesseum é de Emanuel Araújo, de 1974, e está depositada na Biblioteca da Escola de Comunicações.
Hórus e Seth era o grande embate que acontecia, mas também aqueles que faziam
parte dos séquitos de Ísis, ou Thoth, Anúbis e mesmo Osíris. Todavia podemos
compreender o povo, ainda, como um grande coro no Festival de HaKer, participante de uma imensa procissão, com marcações específicas – a exemplo dos momentos quando deveria se separar para formar um grupo de seguidores ou quando
deveria estar unido por onde caminharia e onde se colocaria enquanto público e ao
mesmo tempo participante do Mistério.
Os seguidores formavam coros com falas específicas, como podemos observar na CENA 22 do Papiro Ramesseum, com um breve diálogo entre Hórus e seus servidores:
SERVIDORES DE HÓRUS (a Hórus) – Restauramos em teu
rosto o olho, antes que rubro fi casse pelo sangue jorrado!
(Oferece-se) vinho de Buto.
HÓRUS (aos seus servidores) – Nunca mais ele me será tomado.
(Papiro Ramesseum apud ARAÚJO, 1974, p. 47).
Os atos simbólicos presentes no Mistério são mostrados cenicamente,
como podemos observar desde o início do Ramesseum tomando como modelo a
CENA 2, quando Thoth traz o cadáver de Osíris sobre as costas de Seth, em frente
aos príncipes que carregam oito vasos para equipar a barca real, enquanto anciãos
estão reunidos no palácio. Parece sempre haver muitas pessoas em cena, necessitando de uma marcação cuidadosa para que tudo pudesse compor o ato simbólico,
contando e reproduzindo a história ao mesmo tempo, pois observamos a presença
de inúmeras narrações nos textos, bem como as ações acontecendo, mantendo a
tradição representada pelo Leitor e pelo Celebrante – a palavra e a ação conjugadas criando a força necessária para que o ritual tivesse êxito.
No Papiro Ramesseum, o Olho é o símbolo mais recorrente, sendo referenciado em inúmeras cenas em que Hórus está sendo preparado como o novo rei.
Há uma sequência que trata da entrega do Olho para Hórus, em que encontramos
a presença do Sacerdote-Leitor, o Celebrante, Thoth, responsável pela entrega do
Olho (aparecendo como “o olho do poder”) e a entrada de um dançarino para
realizar a dança do olho.
CENA 6 – Entrega dos bolos-shat ao rei.
ACONTECEU QUE O SACERDOTE LEITOR [OFERECEU] AO REI DOIS BOLOS-shat.
Thoth [oferece] a Hórus o outro olho, isto é,
o não conservado por Set.
THOTH (a Hórus) – Trago teu olho que nunca mais perderá!
OFERECIMENTO DOS DOIS BOLOS-shat.
Introduz-se o dançarino-iaheb.
HÓRUS (a Thoth) – Meu olho dança diante de ti.
(Papiro Ramesseum apud ARAÚJO, 1974, p. 31)
Thoth, que está presente em todo o Mistério, representa o mantenedor da
ordem, aquele que conduziu o Julgamento na Contenda entre Hórus e Seth, sendo
guardião das palavras (enquanto “Verbo Criador”) de todo o ritual, responsável
por devolver o Olho e preparar Hórus para ocupar o trono de seu pai Osíris. Ele
conduz muitas cenas, sendo responsável por falas que nos mostram as ações realizadas no ritual, como, justamente, o momento da entrega do olho a Hórus.
Na CENA 6, vemos a entrada de um dançarino que parece trazer uma solução cênica para a simbologia do Olho. Há uma imagem poética construída com
a fala de Hórus (“Meu olho dança diante de ti”) e a indicação dos movimentos do
dançarino. A dança estava bastante presente na vida egípcia, desde a pré-história
no vale do Nilo, com relevos que trazem dançarinas acompanhadas de crótalos e,
posteriormente, em tumbas e templos pertencentes aos períodos dinásticos foram
encontradas fi guras pictóricas com movimento de danças e acrobacias, executadas
principalmente por mulheres, com a presença de instrumentos musicais – muitas
vezes, as imagens trazem a presença da marcação de um ritmo por tambores ou
pelas mãos.
A música e a dança faziam parte de todas as comemorações egípcias,
dentro e fora dos templos, como em nascimentos, casamentos, mortes, inaugura-
ções e em todos os festivais que aconteciam no país ao longo do ano. Havia danças
específi cas para cada ocasião, assim como, pelas imagens encontradas, aconteciam
apresentações com danças acrobáticas realizadas individualmente, em duplas (nos
desenhos aparecem sempre dois homens ou duas mulheres) e em grupos.
Nome Egípcio para Saturno :
(Ḥeru-ka-pet, também conhecido como Hórus, o Touro)
IMAGEM, MÚSICA, AÇÃO: Iconografia da cultura musical.
e(m) seus espaços de apresentação/representação.

Fig. 5. Desenho de carpideira a lamentar, a partir de pintura no Túmulo de Usirhat, Dinastia XIX.Fonte: Araújo (1974).
Podemos observar pelos movimentos encontrados nas imagens pictóricas, principalmente em tumbas no Egito, que havia um repertório de gestos simbólicos que eram conhecidos por todos, como por exemplo, a representação do
lamento, dor e desespero, que eram realizados pelo coro de carpideiras, repetindo
o ato de Ísis e Néftis no Mistério de Osíris, que lamentam a morte de Osíris. Esses
gestos simbólicos possuem uma “qualidade cênica” tanto na gestualidade, quanto
na disposição das figuras nos quadros, que parecem mostrar a forma como o Mistério de Osíris acontecia ao observarmos os desenhos que reproduzem tais imagens.

Fig. 6. Hórus, com os quatro filhos, todos com adagas, apresentam Seth, como um asno abatido, para Osíris. Atrás de Osíris o deus Serápis. Relevo de Dendera, desenho de Budge.
Fonte: Cashford (2010).
No Livro dos Mortos, no capítulo 183, há um hino, uma composição do
Novo Império, que seria cantado por alguém que seria julgado no mundo dos
mortos e que havia participado do Festival, sendo um seguidor de Thoth:
“Cheguei perante ti, Ó Filho de Nut, Ó Príncipe da Eternidade!
Sou um seguidor de Thoth, rejubilando-me com tudo o que ele fez.
Ele trouxe o doce ar para tuas narinas;
Vida e vigor para alegrar tua face;
E o vento Norte, que vem de Atum, para tuas narinas.
Ó Senhor da Terra Sagrada! Fez a luz brilhar sobre teu corpo inerte,
Por ti ele iluminou os caminhos escuros,
Por ti ele dispersou a fraqueza de teus membros por seu potente [encantamento]
Por ti ele reconciliou as Duas Terras,
Por ti ele pôs fim à tempestade e à confusão,
Por ti ele pacificou as Duas Terras,
De modo que elas estão juntas em paz, afastando a ira de seus corações
De modo que confraternizem.”
(Livro dos Mortos apud CLARK, 2004, p. 171).
O Hino estava endereçado a Osíris, mas era de Thoth que falava. Como Deus da escrita, da linguagem, da fala, era o possuidor da palavra, do poder dos encantamentos e foi enaltecido em cantos e hinos, assim como outros deuses.

Nos Templos egípcios havia os sacerdotes e sacerdotisas responsáveis pelos cantos, como temos o exemplo de Sha-Amun-en-su (750 A.E.C.), em seu sarcófago aparece a designação como cantora (heset) de Amon, sendo responsável pelos cantos cerimoniais do Templo de Karnak, onde acontecia o Festival Opet.
Alguns egiptólogos afi rmam que os cantores e cantoras eram instruídos em escolas de canto, provavelmente dentro dos templos, que eram responsáveis pela instrução no Egito e tinham uma importante posição dentro da corte faraônica. Há referências de que nos palácios havia também professores, aparecendo em túmulos descrições como “instrutor de cantores reais”, “superintendente de cantores palacianos”, “diretor de cantores palacianos” ou “diretor de todo o belo entretenimento do rei”, formando músicos, cantores e dançarinos que faziam parte do harém, e preparavam as apresentações que eram realizadas nos palácios ou em eventos reais.
Essas funções eram realizadas por homens e mulheres, como podemos observar os nomes de alguns instrutores, aparecendo Hem-Rê que ostentava os títulos de “superintendente das cantoras” e “superintendente das mulheres dançarinas do harém”.

Fig. 11. Sarcófago de Sha-Amum-em-su (750 A.E.C.), cantora (heset) de Amon, responsável por funções cerimoniais no Templo de Karnak.
