Um debate acerca da possibilidade de reflexão teológica.
Resumo:
O presente artigo debate o uso do conceito de teologia para a antiga religiosidade egípcia. A motivação para esse estudo nasce da constatação, demonstrada no início desse trabalho, que diversos egiptólogos usam o conceito em questão de formas extremamente variadas, sendo que apenas dois autores que encontramos, Assman e Ritner, se preocupam em conceituar o que seria teologia no Antigo Egito. Aqui, nós vamos nos apoiar em alguns teólogos para definirmos o que é teologia, depois analisarmos as formas como Asman e Ritner tratam tal conceito, para finalmente refletindo sobre o seu uso ou não para a realidade egípcia.
INTRODUÇÃO.
Sem dúvida nenhuma, a religião foi o aspecto da antiga sociedade egípcia que a egiptologia mais se dedicou a estudar nos últimos dois séculos. São diversos os fatores que contribuem para esse fato, aqui destacamos a variedade maior de fontes religiosas (principalmente ligadas a religião funerária) do que de outros aspectos da vida, o gigantismo de seus monumentos religiosos, a inegável relação entre a monarquia e a religião nessa sociedade, os aspectos únicos de sua arte religiosa, um certo “exotismo” atribuído por mentes “ocidentais” ao se deparem com a forma como os deuses desse povo eram representados, entre outros fatores.
Muitos dos estudos acerca da religião no Antigo Egito acabam por se dedicar a assuntos relacionados com a religião funerária. As conexões entre monarquia e religião e os diferentes aspectos mágicos envolvidos nessa prática religiosa também são temas de muitos trabalhos. Contudo, poucos são os estudos que se preocupam em refletir sobre o que seria a teologia egípcia ou sobre as causas sociais para as transformações das narrativas religiosas.
Nesse artigo, nós nos debruçaremos sobre a possibilidade da existência de uma teologia egípcia e, caso a mesma exista, em qual período histórico a mesma se desenvolveu e quais eram os principais temas de trabalho.
Debater sobre o termo teologia dentro da religião egípcia é necessário, pois diversos são os egiptólogos que aplicam esse termo em diversos fenômenos que ocorrerem dentro da religião do povo em questão, sem nem ao menos conceituar o que seria teologia. Para ficarmos em alguns exemplos, vamos demonstrar como alguns autores utilizam o conceito de teologia para contextos diferentes.

Começaremos por Coulon, que afirma a existência de uma teologia tebana do deus Osíris. Vejamos o que o autor diz:
“O estudo de teologia tebana de Osíris, como manifestações locais de seu culto, envolve necessariamente levar em conta a multiplicidade de formas que este poderia ter, essa multiplicidade resulta, em particular, da proliferação de capelas dedicadas a Osíris na periferia do templo de Amon.”
(Coulon, 2009, p.1).
Agora fiquemos com as palavras de Mathieu: “Não, é absolutamente necessário buscar na teologia de Osíris, tão tentador quanto o empreendimento, um prenúncio distante do cristianismo” (Mathieu, 2010, p. 104). A distinção entre Coulon e Mathieu é que enquanto o primeiro está trabalhando especificamente com o deus em Tebas, o segundo parece englobar todo o conhecimento acerca dessa divindade como teológico.
Já Hendricks, Huyge e Wendrich começam um artigo afirmando que:
“O pensamento religioso no Egito era rico e variado, como vislumbrado no registro visual e textual nas paredes do templo e da tumba. A maior parte da teologia e da imagem religiosa do mundo, no entanto, está implícita e apenas aludida através de referências à rica mitologia.” (Hendricks; Huge; Wendrich, 2010, p. 15) Ou seja, aparentemente para os autores, a teologia seria uma espécie de concepção do mundo ou algo do tipo.

Vejamos agora uma pequena explicação de Kemp sobre o que seria a teologia menfita:
“Teologia Menfita é como é conhecida uma cópia do século VIII a.C. de um documento composto muito antes, possivelmente no Reino Antigo ou até mesmo antes, embora este seja um assunto disputado. Ele tenta explicar a dualidade geográfica da realeza egípcia, as posições dos deuses Hórus e Seth, a supremacia da capital Mênfis e, finalmente, de seu deus criador, Ptah. Hórus é apresentado como o primeiro rei do Alto e do Baixo Egito, adquirindo essa posição, tendo sido anteriormente apenas o rei do Baixo Egito, depois que o deus Geb deu a ele também o reinado do Alto Egito, até então mantido por Seth.”
(Kemp, 1989, p. 72).
Podemos perceber um fato bastante relevante na explicação de Kemp sobre o que seria a teologia menfita. Primeiro que ele diz explicitamente que se trata de um documento que ficou conhecido desta maneira, segundo ele descreve o conteúdo do mesmo, o que Kemp não faz é explicar qual motivo o termo teologia é apropriado para se referir a esta fonte. Assim como ele, Trigger trabalha a mesma fonte de forma semelhante: “A assim chamada teologia menfita atribui a criação do mundo por Ptah, deus patrono de Mênfis” (Trigger, 1989, p. 66). E também David: “A teologia menfita é, portanto, ligada principalmente às funções criativas do pensamento, expressão verbal e transformação do conceito em realidade” (David, 2011, p. 126).
Finalmente temos a forma como Santos utiliza o termo teologia, falando em teologia egípcia da maneira mais geral possível, embora no momento estivesse trabalhando com o Deus Hórus:
“Relação à concepção póstuma de Hórus, a única menção de Plutarco refere-se ao nascimento de Harpócrates, uma criança fraca de pernas, que na teologia egípcia seria Hórus criança, encontrando a explicação em termos filosóficos para tal problema (De Ísis, cap. 19). Deve-se ressaltar que a cena da concepção póstuma de Hórus teve uma importância muito grande para os egípcios.”
(Santos, 2003, p. 101).

Justamente por isso, em um primeiro momento vamos discutir o próprio conceito de teologia, o que seria teologia e no seu espectro mais ampliado e posteriormente entraremos no debate sobre o Antigo Egito. Portanto, vamos agora numa segunda parte deste ensaio refletir sobre o que seria Teologia.
