A CRISE DO POLITEÍSMO COMO BERÇO DE UMA TEOLOGIA EGÍPCIA.
Começaremos a explorar possíveis respostas para o que seria uma teologia egípcia com Assman. Conforme dizemos acima, este autor enxerga uma ligação entre o enfraquecimento do politeísmo egípcio e o surgimento do que seria uma nova forma de se lidar com o sobrenatural, a qual ele acredita se tratar de uma teologia propriamente dita. O grande mérito de Assman frente aos outros egiptólogos que citamos até aqui é que ele está preocupado em delimitar o que seria teologia, seu surgimento na sociedade egípcia, e por qual motivo a mesma teria surgido.
A preocupação é tal que o autor reconhece que o termo teologia é muitas vezes aplicado como algo restrito ao cristianismo e que é bastante questionável o seu uso para o Antigo Egito, ele chega a afirmar que: “A aplicação desse termo parece uma retroprojeção eurocêntrica de problemas que formam o centro de sua própria religião, mas que provavelmente eram muito remotas para as antigas preocupações egípcias”
(Assman, 1994, p. XI).
Para Assman teologia egípcia não é um conceito abstrato que pode ser utilizado independentemente do período histórico com o qual estamos trabalhando. Além de definir o que seria teologia, este egiptólogo também localiza o surgimento da mesma no tempo: “O discurso teológico é um fenômeno tardio. Ele surge durante o Império Novo (séculos XII à XV a.C.) em torno de um problema particular: que é a concepção do Maior Deus ou do Ser Supremo e a relação deste/desta divindade com os outros membros do panteão” (Assman, 1997, p. 1).
Temos aqui mais um mérito desse autor, que delimita o surgimento do que seria teologia temporalmente, não sendo a mesma um fenômeno universal dessa religião. Em outras palavras, Assman coloca a teologia como uma forma diferente de manifestação do conhecimento religioso, o que vai de encontro ao conceito de trabalho que estamos usando para pensar o que seria uma teologia.
No entanto, não basta que Assman nos diga que a teologia só surge no Antigo Egito durante o Novo Reino, é preciso que ele demonstre como isso ocorreu. Basicamente para o autor a produção teológica egípcia surge em um contexto de crise do politeísmo (Assman, 1997, p. XII). Para ser mais preciso esta crise ocorreu posteriormente ao Período de Amarna (1400 a.C. – 1320 a.C.), quando o rei Amenófis IV muda seu nome para Akhenaton, bane todos os deuses da tradição religiosa egípcia e afirma que somente Aton é um deus verdadeiro e pode ser cultuado no Egito, implementando assim uma espécie de monoteísmo1.
Assim como teologia, termos como monoteísmo e politeísmo são carregados de significados que muitas vezes não dominamos e deixamos passar na discussão. Por isso achamos relevantes fazer este debate, tendo-se em vista que este é um ponto central para entendermos as propostas de Assman. Inclusive o próprio autor apresenta o que seriam estes conceitos:
O monoteísmo é um termo geral para as religiões que confessam e adoram apenas um deus. “Um só Deus!” (Heis Tbeos) ou “Nenhum outro deus!” (Primeiro mandamento) – esses são os lemas centrais do monoteísmo. As religiões incluídas no termo politeísmo não podem, contudo, ser reduzidas a um único lema de significado oposto, tal como “Muitos deuses!” Ou “Nenhuma exclusão de outros deuses!” Pelo contrário, a unidade do divino é um tópico importante nas tradições egípcias, babilônicas, indianas, gregas e outras politeístas. […]. O monoteísmo é autodescrição,
o1 Existe todo um debate em torno do fenômeno religioso ocorrido durante o Período de Amarna. Aqui, basta dizer que existem estudiosos que defendem que o que ocorreu nessa época não foi um monoteísmo, e sim uma monolatria, ou seja, o culto a um único deus, sem negar a existência de outras divindades.
Politeísmo é a construção do outro. […]. A unidade, neste caso, não significa a adoração exclusiva de um deus, mas a estrutura e coerência do mundo divino, que não é apenas um acúmulo de divindades, mas um todo estruturado, um panteão (Assman, 2004, p. 17).
É possível perceber que a despeito do que poderíamos pensar apenas pelos termos isolados o politeísmo não significa a desorganização divina ou a simples multiplicidade de deuses, este conceito comporta a ideia de uma organização, que neste caso é a organização do panteão dos deuses.
Tal fator nos ajuda a refletir sobre a própria estrutura do panteão egípcio. Temos diversos deuses, em muitos casos mais de um deus por função e sem que se encontre necessariamente diferença de autoridade entre eles. Além disso, temos divindades que são cultuadas apenas na esfera local, das cidades, enquanto outras já tem um verdadeiro culto estatal, que se alastra por todo o país. Por esse motivo Janák afirma que o panteão egípcio teria uma estrutura que seria de uma federação (Janák, 2011, p. 126). Um fato interessante é que o autor afirma que o panteão também não manteve sua estrutura de maneira perpé- tua, vide que o mesmo aponta uma possível mudança entre o Antigo e o Médio Reino:
Acredito também que, no tempo do Antigo Reino, existia um conceito do deus principal como a cabeça do panteão que reflete o status do rei terreno. No entanto, a noção de um reinado real entre os deuses foi introduzida apenas durante o Médio Reino, quando conceitos e ideias ligadas à ideologia real penetraram no mundo dos deuses e na esfera privada não real (Janák, 2001, p. 126).
Voltando ao centro do nosso debate é necessário que tenhamos em mente que existem outras formas de se organizar uma religião para além do monoteísmo e do politeísmo. Outro conceito que é importante para compreender as colocações de Assman é o de henoteísmo. Segundo o autor trata-se de um monoteísmo de perspectiva, onde não se nega a existência das outras divindades, mas se reconhece o valor apenas no culto de uma.
O conceito em questão é importante porque ele também está conectado com o surgimento da teologia egípcia. Aparentemente durante o Novo Reino houve um período em que o henoteísmo e politeísmo entraram em disputa. Segundo Assman:
No Egito, a perspectiva henoteística da literatura de sabedoria e o politeísmo do culto coexistem sem nenhum conflito aparente. Durante o Reino Novo, no entanto, a perspectiva henoteística também começa a afetar certos domínios da literatura do templo, especialmente os hinos de Amon-Re, o deus da capital, Tebas, que se identifica com o deus-sol de Heliópolis (Assman, 2004, p. 23).
São justamente os hinos dos deuses solares que são considerados o gênero literário, por excelência, da teologia egípcia. Segundo o autor neste tipo de fonte temos a representação de um fenômeno único, que seria o aparecimento da teologia egípcia (Assman, 1994, p. 1). Vale reforçar que o desenvolvimento da teologia egípcia está associado ao Período de Amarna e a necessidade de sua refutação (Assman, 1997, p. 2). Ainda segundo este autor é necessário que a religião busque se reproduzir para que se abra espaço para um processo de canonização da tradição. Este processo cria a necessidade de se criar um corpo de especialistas responsáveis por entender a tradição e sua continuidade. Ele afirma:
“Esse processo é inevitável, mas as consequências são, em certa medida, mitigadas pela criação de uma ciência filológica e teológica da hermenêutica, cuja tarefa torna-se gradualmente maior e mais difícil à medida que a distância entre “texto” e ‘realidade’ aumenta. Como resultado de sua canonização, o discurso teológico (e mutatis mutandis o literário) mobiliza especialistas, que se tornam nota familiar apenas com a tradição desses textos, mas também com o corpo de conhecimento em constante expansão, requerido para continuar a tradição: […]. A canonização do discurso religioso, o estabelecimento de uma classe exclusiva de sacerdotes e a identificação do conhecimento religioso como algo separável de todo o sistema cultural são três processos interdependentes. Ao contrário do hinduísmo e do judaísmo, o comentário como um correlato necessário da canonização na religião egípcia foi mantido ao mínimo. No Egito, os esforços de transmissão das escrituras concentram-se mais na crítica textual do que na interpretação. “
(Assman, 1994, p. 6. Grifos do autor).
Finalmente devemos dizer que o autor apresenta uma ligação entre a teologia e a magia. Ele afirma que as passagens teológicas que são utilizadas pela magia são uma exce- ção e: “Além disso, em cada um dos casos que consegui coletar, estamos lidando com reutilização. Parece óbvio que o texto é retirado de outra função no contexto da magia” (Assman, 1997, p. 6). Ou seja, não há nem o uso recorrente da teologia na magia e quanto a segunda lança mão da primeira, ela o faz de maneira a retirar a teologia de seu contexto.
As hipóteses apresentadas por Assman nos parece bem embasadas e em um primeiro momento tendemos a concordar com ele. No entanto, em muitos momentos sentimos que o autor está fazendo uma grande reflexão teórica, sem grandes vestígios nas fontes para o seu embasamento. O grande cerne desta questão para nós é quando ele fala da criação de um corpo de especialistas, que terá como dever interpretar esta nova teologia e compreender a antiga. Quando refletimos teoricamente a respeito do que Assman está propondo acreditamos que seja plausível, contudo, o mesmo não tem nenhuma fonte que nos consiga indicar que este movimento está ocorrendo, portanto, a mesma não passa de uma hipótese intuitiva, e nada mais. Se o autor tivesse como disponível um édito real, uma carta entre sacerdotes ou quaisquer outros tipos de documentos que nos tragam mais materialidade para a sua teoria, ela ganharia força, mas como este ainda não é o caso, continuaremos no campo das intuições.
Caso a interpretação de Assman esteja correta e os hinos solares a Amum sejam o reflexo de uma interpretação sobre as relações das formas religiosas que chamamos de monoteísmo, politeísmo e henoteísmo concordaríamos com a ideia do autor de perceber em tais hinos uma reflexão teológica. O que nos incomoda neste caso, é que não há conflito entre os teólogos egípcios de Assman. O autor inclusive parte do pressuposto que a teologia nasceu de um conflito na forma como se ver a religião, contudo ele não apresenta como esses conflitos eram realizados, Assman não nos mostra a materialidade das disputas religiosas, ou melhor, aos documentos resultados dessas disputas. E por mais que a religião estivesse totalmente conectada ao Estado egípcio, a existência de uma teologia forçaria levaria a diferentes interpretações intelectuais sobre a religião. O que não vemos na forma como o autor analisa o problema. É como se a teologia fosse uma coisa unitária e sem conflitos, e sabemos que não é assim. Mesmo não estando procurando no Antigo Egito uma teologia similar a nossas na contemporaneidade, estamos lidando com uma forma muito específica de reflexão, uma reflexão sobre os deuses, e essas quase sempre apresentam muitos conflitos e disputas, o que mais uma vez, não é visível em Assman. Todos esses levantamentos só nos fazem enxergar com mais cautela a maneira como este autor interpreta suas fontes, para que não caiamos em seus erros para interpretar o que seria o conceito de teologia.
Encerramos por aqui as reflexões feitas a partir de Assman o que seria teologia. A partir de agora, nos debruçaremos na forma como Ritner entende este conceito.
