AFINAL O QUE É TEOLOGIA?
Definimos a palavra teologia como estudo de Deus, teo (Deus) e logia (estudo). A origem dessa palavra se encontra na língua grega: theología/theologéin. Ao consultarmos o dicionário encontramos a seguinte definição de teologia: “Estudo das questões referentes a divindade e de suas relações com os homens” (Anjos; Ferreira, 2001, p. 668a). Somos informados por Passos que essa palavra era originalmente usada em relação aos mitos, e que teólogos eram aqueles que cantavam os mitos na Grécia Antiga. O autor também nos informa que foi Aristóteles, mais precisamente em sua obra Metafísica, quem primeiro deu a palavra teologia o significado de ciência, de reflexão racional (Passos, 2010, p. 106).
Chamamos à atenção brevemente em um dos termos utilizado no dicionário para definir teologia, o texto que citamos acima diz: “referentes a divindade…”. Acreditamos que o fato da palavra divindade estar no singular não seja um simples equívoco, mas sim a concepção subjacente de que somente no cristianismo haveria teologia. Passos parece estar de acordo com a maneira restrita como o dicionário define teologia e assim ele sintetiza o que é teologia em seu livro:
“[…] a) a perspectiva da fé apresenta-se como dado metodológico que compõe o discurso e não somente como uma opção voluntarista do teólogo; b) tal perspectiva tem sua constituição original, desenvolvimento histórico e consolidação metodoló- gica no universo judaico-cristão; c) de forma que, em termos teóricos e metodoló- gicos, o que se mostra como teologia deverá referir-se de algum modo a esse modus operanti cognitivo, sob pena de introduzir uma ruptura semântica com um conceito milenarmente consolidado; d) a teologia das religiões significa a introdução de uma perspectiva que amplia o próprio significado da fé cristã como grandeza que afirma o diálogo como dado implícito à fé e a verdade a ser buscada dentro e fora do Cristianismo.”
(Passos, 2010, p. 103) [Grifos do autor].
Restringir a manifestação do pensamento teológico apenas em uma religião, que por curiosidade é a religião com mais praticantes no Brasil, independentemente de suas denominações, é no mínimo criar um conceito demasiadamente estreito. Sobre isso, vejamos o que diz Andrade:
“O processo de reconhecimento dos cursos de Teologia, como foi visto, ao mesmo tempo que oferece garantias de qualidade, deixa espaço suficiente para as diversas tradições religiosas, de tal modo que mesmo cursos destinados à formação de teó- logos de tradições não cristãs podem ser e estão sendo reconhecidos.”
(Andrade, 2009, p. 32).
Portanto, no Brasil, os cursos de teologia reconhecidos pelo MEC não privilegiariam o cristianismo como sendo a única religião capaz de fomentar o pensamento teológico. Cabe então perguntar, qual o conceito de teologia adotado pelo Estado brasileiro? Foi o parecer 241/99 da CNE (Câmara Nacional de Educação) que regulamentou a situação dos cursos de teologia por todo país. No parecer temos a seguinte definição de teologia: “como uma análise efetuada pela razão sobre os preceitos da fé” (Pauly, 2006, p. 23). Em seu artigo Andrade também define teologia, posteriormente a uma citação de Vernat, que diz que para existir teologia é necessário a existência de livros e um corpo de especialistas, o autor argumenta:
“A Teologia não é um saber sobre as religiões estabelecido desde um lugar externo às mesmas, mas, em sentido estrito, é uma forma particular de saber estabelecido no interior de algumas tradições religiosas distinguindo-se de outras formas de saberes e discursos religiosos presentes na mesma tradição religiosa por seu caráter altamente formal e pelas regras específicas de sua constituição.”
(Andrade, 2009, p. 24).
É perceptível a existência de discordâncias entre a forma como o dicionário e Passos concebem a teologia da maneira como o parecer 241/99 da CNE e Andrade a concebem. Enquanto os dois primeiros tentam restringir essa forma de pensamento ao cristianismo, os outros dois buscam uma concepção mais ampliada da mesma, não a relacionando necessariamente a nenhuma tradição religiosa. Pela própria pergunta que fazemos nesse artigo devemos nos colocar ao lado do parecer e de Andrade, contudo, é necessário salientar que todas as concepções de teologia que apresentamos estão de acordo em um ponto, que a teologia se constitui como a capacidade de reflexão da razão humana sobre uma tradição religiosa, argumento central de todas as definições apresentadas, ou para ficarmos mais uma vez nas palavras do parecer 241/99: “uma análise efetuada pela razão sobre os preceitos da fé” (Pauly, 2006, p. 23).
Tendo em vista este conceito de teologia que estamos trabalhando, podemos perceber que a teologia existe nas religiões, mas não é a religião propriamente dita, ou melhor, não é o conhecimento religioso. O próprio Passos chega a estabelecer esta distinção: “o conhecimento religioso opera na lógica do símbolo, ou seja, a partir de algo que tem a força de remeter para experiências que estão para além de si mesmo. É uma realidade sensível e presente que comunica o ausente e fá-lo transparecer como totalidade no fragmento, como força na fragilidade ou como eternidade na temporalidade.” (Passos, 2010, p. 71).
Da mesma forma que estabelecemos esta distinção também podemos e devemos distinguir os líderes religiosos dos teólogos. Ficamos com o exemplo de Lopes, que em um dos seus trechos distingue o teólogo do pastor:
Eis aqui o cerne da distinção entre o “teólogo” e o “pastor”. O primeiro é um pesquisador de temas teológicos e religiosos, que, necessariamente, pode ter pouco ou nenhum envolvimento com o campo pastoral; o segundo é possuidor do “cheiro” da ovelha. Em função disso, pode-se afirmar que muitos são os formados em teologia, professores de cursos de teologia e seminários confessionais, bem como os formados em seus Programas de Pós-Graduação, mas que não podem ser chamados de “pastores”, a não ser que estejam efetivamente em atuação no campo pastoral (Lopes, 2010, p. 34).
Ainda nos sobra, contudo, uma última pergunta: para que serve a teologia? Qual é a sua função em nossa sociedade hoje? Nós verdadeiramente nos surpreendemos com a resposta dada por Gomes, porque ela em certo sentido guarda uma profunda semelhança pelo motivo que nós, historiadores, ainda cumprimos com o nosso papel:
Portanto, em minha opinião, o grande desafio é fazer Teologia para compreender o presente, por exemplo, vamos nos preocupar com o que os pobres não têm para comer e o rico tem demais, a ponto de ficarem obesos. Observar que problemas se levantam no cotidiano e que respostas temos para dar a partir da hermenêutica bíblica (Gomes, 2016, p. 8).
A resposta de Gomes aponta que a teologia deve dar conta dos problemas do presente. O grande mérito dessa resposta é colocar a teologia como uma reflexão acerca da realidade humana, o que pode ser útil para pensarmos no contexto egípcio, caso exista tal forma de raciocínio nessa sociedade. Obviamente que temos consciência que muito dificilmente vamos encontrar alguma reflexão religiosa egípcia estruturada de tal forma como a teologia contemporânea, quanto mais que conteste as diferenças entre as classes sociais, mas por outro lado, podemos encontrar reflexões acerca de problemas humanas daquela sociedade, como por exemplo as faltas de cheias do Nilo ou problemas relativos a algumas doenças. Não se trata, portanto, de buscar no Antigo Egito um pensamento teológico parecido com a atual, mas sim, uma forma de pensar que seja racional acerca dos problemas humanos que partam da relação com o sobrenatural.
Nossas indagações acerca do que seria o pensamento teológico foram respondidas no apoio dos autores que estamos utilizando neste tópico. Decerto, existem outras respostas possíveis, contudo, para nós as conclusões que chegamos depois desta breve reflexão são mais do que suficientes.
Cabe então reafirmar a definição de teologia que ficamos, a mesma do parecer 241/99 da CNE: “uma análise efetuada pela razão sobre os preceitos da fé” (Pauly, 2006, p. 23). Assim sendo, resta-nos então finalmente perguntar: existe teologia no Antigo Egito?

TEOLOGIA NO ANTIGO EGITO: UM DEBATE ESCASSO.
O título deste tópico reflete uma realidade demonstrada neste estudo em seu princípio, a falta de debate que existe em torno do conceito de teologia no Antigo Egito. Entretanto, como vimos acima, diversos autores utilizam o termo teologia para nomear diferentes conteúdos e fenômenos encontrados nas fontes, sem fazer a menor discussão acerca do que o termo significa. É quase como se teologia não fosse uma ferramenta conceitual utilizada para passar uma ideia, mas sim uma palavra de fácil entendimento pelo senso comum. Em sua tese de doutorado João reflete sobre a naturalização com a qual a egiptologia trata o conceito de Estado, e em um determinado parágrafo com base em um artigo de Moreno Garcia a autora afirma:
Neste sentido, vale a pena apontar que a Egiptologia parece bastante resistente a perceber a importância de abordagens mais teóricas e se constitui como um campo de discussões essencialmente empíricas. […]. Um dos pontos para o qual o autor chama mais atenção é, justamente, seu isolamento e atraso em elação a outras ci- ências sociais no que diz respeito a métodos e teorias envolvendo discussões de temas complexos como economia e sociedade (João, 2015, p. 33).
De nossa parte devemos dizer que concordamos com a autora quando esta afirma que a egiptologia está atrasada em diversas reflexões teóricas frente aos demais campos das ciências humanas. E mesmo a religião tendo sido um dos campos mais privilegiados de estudo e pesquisa, isso não significa que as reflexões acerca desta parte da vida social esteja muito mais avançada em relação aos estudos sobre o Estado, vide o uso sem o menor crité- rio do conceito de teologia que mostramos em nossa introdução.
Ao longo do tópico anterior buscamos nos munir das reflexões de alguns teólogos para estabelecermos o que é teologia e qual é a sua função em nossa sociedade. Cabe dizer que as respostas que chegamos são respostas contemporâneas, encontradas por teólogos contemporâneos que analisam a teologia sobre o prisma das questões do tempo presente. Assim sendo, não esperamos e nem podemos esperar encontrar entre os antigos egípcios um conceito de teologia que seja similar ao que encontramos atualmente, quando muito este servirá de parâmetro para analisar e compreender melhor as mudanças deste fazer no tempo e, talvez entender como a sociedade que estamos analisando lidava com o mesmo.
Contudo, como estamos analisando a antiga sociedade egípcia tem um complicador a mais nesta equação. Até onde nossas buscas foram capazes de chegar, diferentemente dos gregos, não encontramos nenhuma palavra egípcia que signifique teologia.
Pensamos que conceitos são ferramentas, são materiais linguísticos que utilizamos para compreender um determinado fenômeno nas sociedades humanas. Por isso, acreditamos que podemos sim utilizar de conceitos que não existem no idioma de um dado povo para compreender um certo fenômeno que se manifesta neste mesmo povo. Contudo o uso deste instrumental dentro deste cenário se torna bem mais delicado. Afinal somos nós que estamos categorizando um dado fenômeno que não se interpretava dessa maneira até então pelos nativos. Para ficarmos com o nosso exemplo concreto, não estamos mais buscando um conceito de teologia no Antigo Egito, mas sim, tentando encontrar no Antigo Egito um fenômeno que possa se assemelhar ao que entendermos por teologia. Essa operação intelectual não se restringe a este conceito e ocorre nos mais diferentes estudos sobre as mais variadas sociedades, e em muitos casos é a operação correta a se fazer, mas nem por isso deixa de ser uma operação delicada.
Felizmente podemos dizer que apesar de pouca, temos alguma companhia na busca por um conceito de teologia no Antigo Egito. Até onde podemos encontrar, outros dois egiptólogos também tentaram trabalhar este conceito. Estamos falando de Assman que via uma ligação entre o enfraquecimento do politeísmo egípcio e o surgimento de um fenômeno que ele classifica como teologia e de Ritner, que via no conceito de heka e sua associação com a magia uma forma de teologia ao longo de toda história do Antigo Egito. Vamos analisar em diferentes tópicos o instrumental desenvolvido por estes dois autores.
