A importância e evolução da classe sacerdotal no Antigo Egito.

A INICIAÇÃO SACERDOTAL.

A função cultual garantida nos templos era uma responsabilidade faraónica. O seu objectivo supremo era o de garantir a manutenção de um elo entre as divindades e os homens, elo esse que mantinha o mundo em equi líbrio. Para além de uma representação do cosmos, o templo era, antes de mais nada, a morada de um deus. O culto diário dedicado à divindade tinha como intuito providenciar a satisfação de todas as necessidades do deus, as quais eram concebidas à imagem das necessidades humanas: várias vezes ao dia o faraó, o único homem dotado de uma centelha divina, devia entrar no santuário mais recôndito do templo para alimentar, incensar e vestir a imagem do deus, o netjer. Desse modo, o culto garantia que a Terra fosse mantida em ordem, através da Ma’at ,regendo-se de acordo com os ciclos do calendário litúrgico, o que fazia do templo um enclave divino perfeitamente deli mitado no espaço e no tempo. Obviamente, embora o Faraó fosse teoricamente o responsável pelo culto, a verdade é que tinha que delegar os seus poderes nos sacerdotes para que o culto das divindades que povoavam as centenas de templos do Egipto pudesse ser viável.

Embora esta delegação de responsabilidades tenha sempre existido, ao longo do Império Antigo, a iniciação sacerdotal consistia apenas na aquisição de conhecimentos «técnicos» ou liturgicos necessários à execução das tarefas rituais. Não diferia, portanto, da iniciação relativa a uma competência específica necessária para o exercício qualquer outra profissão. É que, nestes tempos mais remotos, o exercício do sacerdócio não envolvia uma profissionalização: as tarefas relacionadas com o culto eram executadas rotativamente por funcionários que tinham a seu cargo outras responsabilidades  administrativas.       Não se pode falar, para estes sacerdotes, de uma verdadeira iniciação, no sentido em que temos vindo a utilizar o termo.                             

Se inicialmente, o clero egípcio não se distinguia dos demais funcionários reais, a verdade é que, sobretudo a partir do Império Novo (1550- -1069 a.C.) começou a verificar-se uma verdadeira profissionalização do sacerdócio, criando-se então uma demarcação crescente entre as funções  laicas e as funções sacerdotais  para estabelecer uma verdadeira iniciação no seio desta «classe» de individuos.172

172. J. ASSMANN, The Search for God, p. 2. Nas épocas anteriores o sacerdócio era uma função  rotativa desempenhada por oficiais e funcionários.

Apesar desta diferenciação, uma boa parte do clero, naturalmente na base da hierarquia sacerdotal, manteve-se indiferenciada.   

Os sacerdotes ueb, os «puros», tinham ocupações laicas ao longo da maior parte do ano. Este corpo de sacerdotes estava organizado em quatro turnos que se revezavam periodicamente em cada estação do ano. Assim, um dos quatro meses de cada estação do ano era dedicado ao serviço no templo. Ao longo desses períodos de serviço, o sacerdote ueb tinha que cumprir regras de limpeza muito estritas. Banhos e depilações eram obrigatórios, assim como a circuncisão, pra ti cada logo no início da puberdade. Ao longo do tempo de serviço no culto, o sacerdote ueb devia igualmente abster-se de actos sexuais. No templo, os sacerdotes ueb constituíam o grupo hierarquicamente mais baixo do clero e também o mais numeroso. A sua principal função consistia em examinar a pureza das provisões utilizadas no culto do deus. No entanto, é provável que, em muitos casos, a função desempenhada pelo sacerdote no templo fosse uma extensão da actividade profissional que desempenhava fora do templo. De resto, oportunidades não faltavam para a prática de todos os ofícios, uma vez que os templos tinham um papel importantíssimo na actividade económica de cada região. Na verdade, o templo era o centro administrativo que regia e coordenava a produção de riqueza de uma de terminada região. Era, por isso, necessário assegurar a gestão de todo o tipo de recursos económicos do templo: controlar as actividades agrícolas, os rendimentos dos seus domínios, contabilizar gastos e ganhos. O sacerdote ueb não revelava, portanto, uma vocação religiosa particular. Finda a prestação mensal no templo, o sacerdote voltava às suas ocupações mundanas.173

Hierarquicamente superiores, os sacerdotes leitores, kheri-hebet, tinham por missão ler os textos sagrados no decurso do ritual do templo. O poder das «palavras divinas», os hieróglifos, que vocalizavam dotava-os de uma grande respeitabilidade e a sua presença era requerida em todo o tipo de rituais, incluindo os rituais funerários.174  

Naturalmente, os sacerdotes leitores eram em número infinitamente inferior aos sacerdotes ueb.  

Pirâmide do túmulo do sacerdote Rer. Século VII a.C. Abidos, Egito. Calcário. Museu Estatal Hermitage. São Petersburgo. Rússia
Pirâmide do túmulo do sacerdote Rer. Século VII a.C. Abidos, Egito. Calcário. Museu Estatal Hermitage. São Petersburgo. Rússia 

O título de «pai divino», it-netjer, era usado por um círculo muito restrito de indivíduos que pode ser considerado como uma verdadeira elite sacerdotal. Trata-se provavelmente da função que assinalava o início do percurso que poderia levar o sacerdote até ao topo da hierarquia sacerdotal. Bakhenkhonsu, por exemplo, foi sacerdote ueb durante quatro anos, desempenhou as funções de pai-divino ao longo de doze anos, antes de alcançar a posição de terceiro sacerdote de Amon.175

O topo da hieraquia sacerdotal era ocupado pelos hemunetjer, os «servidores do deus», regidos pelo sumo sacerdote que, no caso do clero de Amon, se designava hem-netjer tepi en Amon. Era a mais alta categoria do clero que, consoante a importância política do templo, poderia conferir ao sumo sacerdote um poder de decisão muito significativo na gestão dos assuntos locais e até nacionais, como a eleição, através do oráculo do deus, do sucessor legitimo ao trono do Egipto. Muitos faraós, como Hatchepsut e Tutmés III, tiveram de recorrer à legitimação conferida pelo oráculo divino (e certamente controlado pelo sumo sacerdote de Amon) para verem legitimadas as suas prerrogativas reais, o que mostra bem a magnitude do poder político destas altas individualidades.

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